quarta-feira, 6 de maio de 2020

Saruê (Didelphis aurita)

22:00 horas.
Última noite de lua crescente, amanhã estará completamente cheia. Sua luz  me clareia + meu maratá encontrando seu fim, labareda. O café esparramado no cimento, em 3 círculos de 1 metro e 0,5, de diâmetro, abertos, secando.  Da varanda da casa nova eu vejo uma das formações do Espinhaço, serrana, no ponto de corte norte-mineiro > Santo Antônio do Retiro. Meu nariz apontado para a Pedra Grande (dos Tapuias), onde existem artes rupestres seculares, aqui onde meu povo inflou seu sangue, onde a comunicação social + aperfeiçoamento natural + polegar opositor resultou em prosperidade, se hoje, aqui, eu digito.
Galinhas gritam e correm, ex-apoleiradas...
Ligo a luz do poste 
do quintal, corro para a casa velha, onde meu pai assiste telenovela. Faço de arma a lanterna, desviando dos varal, grito 
"É saruê!" 
Se levanta, 
"Desgraçado! De novo!"
Vem ver, vejo uma galinha preta sozinha, lembro de uma assim mas com pintim, dormindo do lado da velha casa, corro pra verificar e ela tá lá, com suas crias, sossegada. 
A preta outra, sozinha, nitidamente atacada, continua louca pelo terreiro. Tranquilo, digo que 
"A que tinha pintinho do lado da casa tá salva."
Entramos no poleiro, feixes luminosos nas árvores. 
Uma contextualização patriarcal: 
"...Porque saruê, quando vê que a luz ligou, trepa na primeira gáinha que vê e vai lá pro ôin. Você ligou o poste, né." 
"...Quando a lanterna bate n'el', el' óia com os oião bem na luz... às vez tá cheio de fióte na bolsa, eles vai saindo e descendo de um em um. E pau." 
{Amoreira, Araticunzeiro, pés-de-andu, Mangueiras, Cajueiro, Umbuzeiro, bananeiras. Procuramos em tudo, pescoço doeu. Nada. Pai reclama...} 
"Essa outra preta também tinha, tinha 2. Ante-ontem tinha 10 mas de lá pra cá foi os 10 embora. Desgraçado. Ontem foi 3. Ontem ela tava assim, aqui perto do pé-de-caju, um só que acompanhou ela, um ficou preso no arame lá nas erva-cidreira e eu tirei e trouxe pra cá. Mas agora acabou." 
- Enquanto não parou de iluminar as copas repletas de galinhas, que dormem, cheias de sorte. 
{Como se eu não lembrasse, das lenhadas, derrubadas com enxada, subindo no pé-de-goiaba, se preciso fosse. Foice, nele aqui embaixo.
E quando era cobra? Mamãe matava de paulada. Papai tem medo de cobra.
Cachorro se escutava a passada. Canídeos safados, comedores de ovos.}
Eu interfiro
"Nós nunca comeu os que mata aqui, né? Só quando os outro faz. Por quê?"
"Dá muito trábái limpar. Eu não sei não. Sua mãe odeia o cheiro." 
- me responde.
"Ó" - procede - "Vamo deitar que daqui 30 minutos ele ataca de novo porque só comeu 2 pinto. Vou nem acender a luz do poste, vou vim só com a lanterna."
"Tá bom, o senhor me grita."
"Viu."
Vou lá pra cima.
E da varanda da casa nova, do lado do café secando, espaiádo, meu chinelo do jeito certo, virado pra riba, babosa, comigo-ninguém-pode, dama-da-noite, de frente pra horta, que antecede a Serra do Espinhaço, às 23:00 horas finalizo este relato. 
Ele permaneceu alumiando  os topos das árvores por uns 20 minutos, andando por toda a roça, enquanto eu escrevia isso.
O saruê atacou as galinhas do outro lado da pista.
Cachorros latem. Malditos canídeos que se fazem de bons moços.

Acordem, vizinhos.

2 comentários:

  1. Uma escrita tão bonita e que consegue transmitir um pouco do que é a vida no interior. Um texto maravilhoso!

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    1. Que delícia ler essas palavras vindas de você! Fico feliz. Sinto saudades. Um xêro.

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